O velho samurai e o conto do presente que recebemos

Presente

No Japão vivia um reconhecido samurai que agora, já idoso, apenas se dedicava a ensinar a sua filosofia a discípulos mais jovens. Apesar da sua avançada idade sobre ele corria a lenda de que ainda era capaz de derrotar qualquer adversário.
Um dia, um jovem guerreiro, conhecido pela sua arrogância e falta de escrúpulos, apareceu para confrontar a lenda.
Este jovem guerreiro era astuto e utilizava a arte da provocação com mestria. Esperava que o seu adversário fizesse o primeiro movimento. Estudava nesse momento a técnica e pontos fracos do seu opositor e contra-atacava a uma velocidade fulminante.
Nunca tinha perdido nenhuma luta mas as façanhas deste idoso samurai perseguiam-no. Pensava então que se pudesse lutar contra ele o derrotaria, espalhando-se por toda a parte a sua fama de vencedor.
Todos os discípulos do velho samurai se manifestaram contra a ideia, mas o velho aceitou o desafio. O jovem começou por insultar o velho mestre. Lançou-lhe pedras, cuspiu-lhe, vociferou os mais indignos insultos, inclusive ofendendo os seus antepassados. Durante horas as provocações foram constantes mas o velho mestre permanecia inabalável, calmo e sereno. Sentindo-se exausto e humilhado o jovem guerreiro acabou por desistir e retirar-se.
Os alunos do velho samurai mostraram-se no entanto desapontados com o seu mestre. Perguntavam-lhe: Como é que o senhor pode aceitar tanta indignidade? Por que não usou a sua espada, mesmo sabendo que poderia perder a luta, ao invés de mostrar-se cobarde diante de todos nós?.
O velho samurai ripostou com uma pergunta: Se alguém chega até vocês com um presente e vocês não o aceitam, a quem pertence o presente?
Um dos discípulos respondeu: A quem tentou entregá-lo.
O mesmo vale para a inveja, a raiva e os insultos. – disse o mestre – Quando não são aceites, continuam a pertencer a quem os carrega.

Este simples conto oriental ensina-nos que somos os únicos responsáveis pela nossa paz interior. Independentemente das provocações que outros nos tragam e das contrariedades que nos surjam, instigando a que o tomemos o veneno que nos servem, temos a liberdade de não o tomar, respondendo de forma consciente e adequada ao que nos acontece.

Os episódios de confronto são diários na nossa vida. Começa desde logo com o despertador que nos acorda a horas impróprias e, por isso, só nos apetece atirá-lo pela janela. Depois é o próprio tempo que corre sem que o consigamos acompanhar entre o tomar banho, vestir, tomar o pequeno-almoço à pressa… E se se lhe juntam crianças, pior ainda! No trânsito há sempre o caramelo que faz uma ultrapassagem perigosa e foi por um ‘niquinho’ assim que não batemos. E é que ainda tem a desfaçatez de nos mandar a um certo sítio quando buzinamos!

Ainda não chegámos ao trabalho e veja-se só a quantidade de presentes tóxicos que já aceitámos, alguns inclusive vindos da nossa própria mente – estou certa que o despertador não tinha qualquer intenção de nos azucrinar o dia logo ao acordar… E neste rol de provações e contrariedades com que a vida nos brinda poderia continuar a descrever todo um dia típico de qualquer um de nós, vítimas incompreendidas, que outro remédio não têm senão andar de costas viradas para a vida, tamanhas são as injúrias a que nos expõe.

Esta é uma perspectiva muito comum mas convenhamos que nada saudável e muito pouco condigna para quem quer viver de forma mais harmoniosa, feliz e consciente. Assim a única forma de vivermos a paz de espírito que tanto desejamos é não a entregando nas mãos de ninguém, nem mesmo dos nossos ardilosos e descomandados pensamentos, mas responsabilizando-nos por cultivar essa paz, independentemente da toxicidade de cada presente que recebemos.

Para tal é importante que façamos um esforço de reconhecer as situações que nos destabilizam e alimentam as emoções que nos fazem perder o controlo e responder explosivamente. Ao identificarmos esses factores, internos e externos, e a forma como por norma reagimos, podemos reconhecer um padrão e antecipá-lo de forma a desenvolvermos progressivamente a capacidade de responder às emoções – que inevitavelmente aparecem – de uma forma adequada e serena.

Por vivermos em piloto automático, sem sequer nos procurarmos conhecer, qualquer provocação ou contrariedade nos destabiliza e tende a ofender. Mas a verdade é que se eu me conhecer dificilmente me deixarei ofender.

Parece pouco louvável, mas não devemos estar recetivos a acolher cada presente que nos entregam. Sejamos um pouco mais zelosos do nosso bem-estar, cultivando uma presença de espírito mais lúcida e tranquila, e deixaremos de sentir fardos tão pesados sobre os ombros. Consequentemente, se deixamos de carregar esses fardos também deixaremos de ter para os entregar a quem connosco convive ou se cruza.

Para conclusão é bom lembrar este pensamento de Buda para reflexão:

Agarrar-se à raiva, guardar rancor, é como segurar carvão quente com a intenção de atirá-lo a alguém; Tu próprio te queimas.

Liliana Ferreira

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