Há uns meses, inspirada por um livro que lia na altura, dei por mim a pagar um café a uma senhora que se sentou na mesa ao lado. A ideia era fazer algo por alguém, sem olhar a quem. Ter um ato de generosidade gratuito, simples, sem esperar nada em troca, para além da reciprocidade que a vida sempre traz de, ao menos, nos sentirmos mais fraternos.
Durante praticamente todo o tempo em que estive na pastelaria conversava por telefone com a minha irmã, mas dei-me conta que a senhora em questão, já com alguma idade e dificuldade de locomoção, teria tido uma manhã algo penosa. Das palavras que ouvi trocar com a empregada de mesa fiquei a saber que passou a manhã no hospital, a fazer exames. Um deles havia-lhe custado particularmente.
Perto da hora de regressar ao trabalho fui à caixa e pedi para pagar o meu café e o da senhora que estava na mesa ao lado. A empregada, algo surpreendida e até consternada, indicou-me que não havia necessidade, a senhora não precisava. Insisti, disse-lhe que não se tratava de caridade. Simplesmente gostaria de oferecer aquele café. Ela olhava intercaladamente para mim e para a senhora da mesa ao lado. Por fim, dirigindo-me à senhora perguntei:
Não se importa que pague o seu café? Reparei que teve uma manhã difícil e gostava de lhe oferecer este miminho.
Agradeceu com um sorriso generoso a amabilidade e por fim lá paguei.
Alguns dias depois quis o destino que eu e a senhora nos voltássemos a encontrar. Ironicamente, na esplanada onde fui beber café, só havia um lugar disponível – na mesa em que a senhora estava sentada, mesmo de frente para ela. Perguntei-lhe se se importava que me sentasse, visto ser o único lugar vago. Com um sorriso pronto disse:
‘De todo. Sente-se. Faz-me companhia’.
Rapidamente se lembrou de mim e começámos a conversar. Soube então que aquela bem-disposta senhora, de cabelo curto, pintado de vermelho, de 89 anos, se chama Milu.
Foi o primeiro café de muitos que já tomámos juntas desde então. Encontramo-nos com regularidade, praticamente sempre na mesma pastelaria e na mesma mesa.
Quase com o triplo da minha idade poderia pensar-se que poucos assuntos comuns teríamos, mas nada mais errado. Falamos um pouco de tudo. Da família, do que fazemos, dos planos, dos nossos interesses, de livros e hobbies, das perspetivas de vida que temos, enfim… São sempre minutos muito bem passados, numa conversa de tempo contado mas sem idade, entre duas amigas que gostam de partilhar um café e dois dedos de conversa.
Hoje a Milu faz 90 primaveras e esta é a minha forma de homenagear esta amiga que muito estimo. Gosto da sua frontalidade, da irreverência, a curiosidade, a alegria e a jovialidade.
Os anos começam naturalmente a pesar-lhe. Sente-o no corpo e em cada atividade que deixa de poder fazer e outrora lhe era tão fácil de executar. Fica frustrada porque mentalmente não se revê nas limitações físicas que sente, mas aceita que é o preço da longevidade.
Apesar da dependência que tem hoje em dia, não deixa de sair para ver gente e se distrair. Escreve alguma poesia que publica na sua página de Facebook e pinta. Disse-me há tempos que quando se reformou, não queria ficar a definhar em casa. Sempre foi ativa e por isso decidiu aprender Pintura na Escola de Belas Artes para ter uma ocupação.
Esta minha amiga é uma artista e uma mestre da vida. Por vezes diz-me que acredita não ser deste mundo, porque sente que não se enquadra nas vidas e experiências que vê por aí. Não se identifica com outras pessoas da sua idade pela forma conformada com que vivem encarcerados nos anos a que sobrevivem.
Eu acredito que o segredo da Milu é a forma resistente e inconformada com que encara a vida. Se as rugas não permitem esconder a sua idade, a iniciativa que mostra e a vontade de viver que espelha no seu ávido olhar não enganam. Nesta minha amiga a idade é apenas um pormenor.
Concordo plenamente com Hermann Hesse quando diz que:
A idade só se aplica às pessoas vulgares.
Parabéns, Milu! E que continuemos por muitos anos a beber os nossos cafés.
P.s: Continuo a pagar de quando em quando, aqui e ali, um café a desconhecidos. As reações são sempre de surpresa e muitas vezes de desconfiança. Às vezes fico sem jeito quando as pessoas se demonstram tão apreensivas e, estranhamente alguns até mostram algum desdém pelo facto de alguém lhes dar algo só porque sim. De vez em quando tento explicar, mas tal como a Milu, fico com a sensação de que sou uma extraterrestre. Talvez por isso, com nenhum outro destes ‘desconhecidos’ comq eu me cruzei tenha mantido o hábito de nos encontrarmos para um café.