Culturalmente tendemos a considerar disciplinar e punir conceitos próximos no que ao educar diz respeito. De tal forma que é comum ouvir-se frases como: Esta criança precisa é de disciplina.
E, sim, de facto se o comportamento de uma criança não é o adequado, então muito provavelmente ela precisará de disciplina, o que não quer dizer que necessite de ser punida. Na verdade, disciplinar e punir não poderiam ser conceitos mais antagónicos.
Para fazer a devida distinção vamos por pontos:
A punição é usada para fins de controlo e manipulação.
A disciplina é utilizada para ensinar e orientar as crianças.
Fazer uma criança pagar pelos seus erros é olhar para ela como se de um criminoso se tratasse. As crianças estão em desenvolvimento. O seu cérebro, ainda muito reativo e sujeito ao controlo das emoções, tem uma real dificuldade em fazer uso do discernimento, uma vez que o córtex pré-frontal ainda está em formação.
Os seus erros precisam sim de ser corrigidos, por meio de uma orientação disciplinar que de facto ensine a criança e não que a faça ficar ainda mais refém de sentimentos intensos, como o medo, a raiva, a tristeza… Cérebros reféns de emoções intensas não estão aptos a qualquer aprendizagem. Apenas procuram sobreviver.
Um estudo sobre o desenvolvimento moral das crianças descobriu que crianças com medo de serem punidas, em contraposição a crianças não punidas, tendem a:
- estar menos dispostas a aceitar a responsabilidade
- ser menos resistentes à tentação
- ter menos controlo interno
A punição interfere no desenvolvimento do controlo interno da criança.
A disciplina ensina às crianças porque um mau comportamento específico é mau.
Com as punições a criança aprende que é responsabilidade de outra pessoa controlá-la. Essa autoridade na sua vida decide então se os comportamentos são bons ou maus e quais as consequências. A criança por seu lado, pode optar por se comportar mal se entender que de alguma forma consegue evitar ser apanhada ou se estiver disposta a lidar com as consequências.
Por seu lado, a pessoa que procura disciplinar assume o papel de autoridade na orientação corretiva do comportamento, fazendo a criança sentir que as regras e limites existem para bem de um conjunto social do qual elas fazem parte e que também as beneficia. Essa percepção da contribuição por via do comportamento promove o controlo interno da criança.
A punição faz com que as crianças concentrem sua atenção e raiva no adulto “injusto”.
A disciplina ensina as crianças a serem responsáveis pelas suas próprias ações.
Violência gera violência, todos o sabemos, mas há pais e educadores que continuam a acreditar que se uma criança bate deve levar uma palmada para aprender que não se bate. Não é incongruente? Muitas vezes fica-se a pensar: Então a criança bate e deixamos que se safe?
Também não. Mais do que atuar instantaneamente sobre o comportamento (embora seja necessário conter a agressividade da criança naquele momento) é preciso mergulhar no que faz aquela criança ter aquele comportamento agressivo. O que será que ela sente? O que pensa? Qual o motivo que a leva a ter aquela atitude? Esteve exposta a modelos agressivos? Que exemplos vê à sua volta sobre como lidar com conflitos? Sobre como gerir fortes emoções? Precisa de treino de outras competências? Necessita de conhecer recursos para reconhecer e lidar com a sua raiva e frustração?…
Todo o problema de comportamento é um problema de relacionamento. Concentrem-se na relação com a criança, em que ela se sinta segura e amada onde está e o comportamento altera-se. Uma criança que perante uma falha não precisa de se concentrar na mão pesada ou dedo acusador do adulto juiz, ganha espaço interno para aprender a assumir a responsabilidade dos seus atos e reparar os seus erros.
A punição valida o medo, a dor, a intimidação e a violência (física ou verbal) como métodos aceitáveis para resolver conflitos.
A disciplina valida o respeito mútuo, a integridade e comunicação como recursos para relações pacíficas.
A punição pode causar danos, não só físicos (se a punição for corporal – e, by the way, contra a lei), mas também psicológicos e emocionais na criança e futuro adulto. Condiciona a forma como a criança se vê, o valor que se atribui, a profundidade das relações que constrói. Uma criança punida cresce com uma baixa autoestima e tem dificuldade em desenvolver relações de confiança, afetividade e segurança com outros. O seu objectivo é sobretudo estar alerta, defender-se ou proteger-se para sobreviver. A criança tende a desenvolver uma atitude de submissão ou, relembrando que o sonho do oprimido é tornar-se opressor – de rebeldia e subjugação dos outros quando tem oportunidade. O que não falta por aí, são infelizmente casos que exemplificam esta realidade.
Punir também passa uma ideia equivocada sobre o que é o amor e a forma como ele se expressa. Ensina que o amor também pode ser violento e que agredir pode ser uma forma de manifestar o amor que sinto. É esta a mensagem que queremos passar? Em muitos casos pode ter sido a mensagem que nos passaram, mas vamos sempre a tempo de transformar esta ideia errada sobre como podemos e devemos amar, amar-nos.
Por outro lado, a disciplina procura o diálogo, a cooperação e responsabilização assente no comum valor da integridade, honestidade e respeito. A criança cresce empoderada e confiante, de mente aberta, pensamento crítico e noção de que pode e deve corrigir as atitudes que são erradas e aprender com elas. A criança a respeitar os outros sem abrir mão do respeito e compaixão que deve nutrir por si. Aprende a comunicar os seus sentimentos e as suas necessidades a colocar limites saudáveis. Aprende a ouvir-se e a ouvir, a ver-se e a ver os outros, a aceitar-se e a aceitar quem a rodeia. A criança aprende que o amor genuíno é pacificador, é respeitador, é flexível, é cuidadoso, é acolhedor e é libertador.
A punição promove a percepção de uma solução final, onde o adulto é o juiz e o executor.
A disciplina cria a possibilidade de soluções, com o adulto na figura de professor e mediador.
Na punição o adulto é o todo poderoso, a quem cabe avaliar os factos, tirar conclusões e dar o veredicto da sentença. Também é a ele quem cabe aplicar as medidas para que o seu ‘réu’ cumpra a pena e pague pelas suas falhas.
Na disciplina o adulto é o guia que dirige a criança do problema às múltiplas soluções, dos erros à aprendizagem, da visão egocêntrica à percepção da importância da contribuição social e do seu lugar nessa dinâmica.
A punição está enraizada na nossa cultura e oferece respostas imediatas.
A disciplina promove o questionamento, paciência e a sabedoria de compreender que todo o fruto requer tempo para amadurecer.
É muito mais simples educar com punição, não só porque socialmente é uma herança que nos acompanha desde décadas e décadas e é ainda culturalmente aceite, mas também porque terá sido a escola de parentalidade que muitos de nós viveu e, querendo ou não, nos momentos em que precisamos de ‘disciplinar’ esta foi a forma que aprendemos de o fazer. É também, aparentemente a forma mais rápida de atingirmos o objectivo de parar o mau comportamento e por isso, ainda que todos possamos admitir que não gostamos de punir, é o recurso mais frequentemente usado.
Aplicar uma efetiva disciplina, firme e gentil, requer tempo, compreender que há ritmos e etapas de crescimento e que não basta semear a semente para teres frutos no dia seguinte à mesa. É preciso cuidar, regar, esperar, ser consistente no método e práticas e deixar crescer para depois, no seu tempo, colher.
Disciplinar, por não ser imediato na nossa cultura, nas nossas casas, requer por isso perseverança, resiliência e confiança e requer ainda, talvez a parte mais difícil, que questionemos e procuremos novos recursos, dentro e fora de nós. Requer uma reeducação, aprendendo com a criança que fomos e com as crianças que temos, com os olhos postos nos adultos que queremos ser e nos adultos que queremos que os nossos filhos venham a ser.
Disciplinar é árduo, é desafiante e frustrante, e também libertador e gratificante
Disciplinar é árduo, é desafiante e frustrante tantas vezes, quando nos vemos dar passos atrás e usar da punição que já não queríamos e não nos faz sentido, mas afinal, está ali tão à mão na hora H. É cair e levantar vezes sem conta. É ter a humildade de errar e aprender não com o intuito de vir algum dia a ser-se perfeito, mas para dar o nosso melhor por nós e pelos nossos.
E é também libertador e gratificante quando vemos o espaço que abre a relações mais autênticas, saudáveis e espontâneas, com mais oportunidades para sermos o melhor de nós e ver crescer nas nossas crianças o seu melhor também.